domingo, 14 de junho de 2009

MATERIA DE CAPA

Chorona de aluguel

Itha Rocha ganha um dinheirinho indo a velórios de ricos e pobres para fazer algo que sabe bem: chorar

Itha Rocha, 58 anos, sempre esteve entre a vida e a morte, a tristeza e a alegria. A baiana é uma das últimas carpideiras ativas do País - ou seja, é paga para chorar no velório de desconhecidos. Mas, quando chega fevereiro, ela veste a fantasia e vira a madrinha dos garis do carnaval, apresentando-se no Sambódromo antes e depois de cada escola atravessar a avenida. “Já saí de um velório direto para o carnaval, e vice-versa”, conta.

Trata-se, como ela mesma gosta de dizer, de uma “carpideira do novo milênio”. “Além de chorar, eu canto, danço, levo cafezinho, leio textos e conforto familiares. Já uni famílias com a minha presença”, comenta. “Sou respeitosa. Se no velório alguém pergunta sobre o meu trabalho, explico a tradição das carpideiras.”

A experiência faz com que Itha saiba como se comportar em cada tipo de cerimônia. “Se é de gente rica, o choro precisa ser contido. Se é de família humilde, o bom é chorar com força, se esgoelar. Mas, no geral, sou contratada por pessoas que acreditam que o choro da carpideira pode facilitar o caminho do morto para o céu.” A profissional chorou a morte do atleta João do Pulo, de Mário Covas, do piloto Ayrton Senna e do deputado federal Clodovil. “Em se tratando de celebridade, não posso aparecer muito. Tenho meu momento e vou embora.”

Itha diz que não cobra um preço fixo. “Ser carpideira é uma missão. Já chorei de graça, já fui só pelo dinheiro da gasolina. Quando é o caso de cobrar, fica entre R$ 200 e R$ 300. Mas sempre converso”, admite. A carpideira diz ter tanto orgulho da sua função que espera ser retratada um dia em uma novela. “Assim, a profissão seria mais valorizada.”

De fato, a história desta carpideira daria um belo folhetim. Desde muito cedo, Itha se equilibra entre os dois extremos da existência. Ainda em Salvador (BA), sua família era composta por mulheres parteiras e carpideiras. Sua avó, Brasilina, e sua mãe, Saturnina, cumpriam as duas funções. “Na barriga da minha mãe, eu já frequentava velórios e partos.”

Assim que aprendeu a se virar sozinha, Itha passou a ajudar mulheres a dar à luz. “Eu tinha a obrigação de distrair as crianças enquanto seus irmãozinhos nasciam. Levava brinquedos e fazia palhaçadas.” Já nos velórios, Itha possuía uma função mais lúdica. “Me sentia mais à vontade. Corria de um lado para o outro tentando saber de que tipo de fruta o morto gostava mais, querendo enterrá-lo com a tal fruta.”

Entre as suas 11 irmãs, algumas puxaram o lado parteiro da família e se transformaram em enfermeiras. Já outras, assim como Itha, se dedicaram ao ofício de chorar em velórios. “Mas eu sou a única que, hoje em dia, fala abertamente sobre isso.”

Aos 19 anos, ela veio passar férias em São Paulo. Apaixonou-se pela cidade e decidiu ficar. Aqui, teve vários trabalhos até chegar à finada Telesp (companhia telefônica de São Paulo). Embora trabalhasse como atendente, destacou-se no grupo de teatro da firma. “Eu fazia peças sobre segurança no trabalho, essas coisas.”

O teatro corporativo ajudou Itha a se enturmar na capital. “Foi um acontecimento quando a turma do trabalho descobriu que eu também era carpideira.” O boca a boca acabou levando a atendente a programas de TV.

É claro que cabe a pergunta: “Itha, você tem medo da morte?” “Não, de jeito nenhum. Eu acho que quem morre está na vantagem. Aliás, venho preparando uma sobrinha para ser carpideira e chorar no meu enterro.” Itha diz que acredita em Deus e na natureza. Ela afirma que a vida é circular. “Se hoje nascemos no Brasil, amanhã podemos nascer em outra parte do mundo...”

Inquieta, sem medo da morte e cheia de vida, Itha arrumou outra função - e bem longe dos cemitérios. “Era 1997, comecei a trabalhar como pesquisadora do IBGE. Fiz umas entrevistas com o pessoal que trabalhava como gari. Aí, tive a ideia de valorizá-los no Carnaval. Sairíamos feito um bloco antes e depois de cada escola.”

A liga das escolas de samba adorou a proposta, mas Itha não conseguia arrumar uma rainha para desfilar com os garis. “A mulherada pensava que se transformaria em ‘rainha do lixo’ e pulava fora. Eu acabei assumindo o cargo, virei madrinha dos garis.” A decisão foi mais um sucesso em sua vida. “No Carnaval, trabalho bastante. Depois, faço muitos eventos por causa desse meu lado também.”

Itha, assim, transformou-se em um paradoxo: ela é a carpideira da alegria. “Sou água. A água do choro, a água do parto e também a água do suor do carnaval.” (Gilberto Amendola - Jornal da Tarde)

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