segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

MATÉRIA DE CAPA

Com a palavra o cão

Você acha que sabe tudo sobre o seu bichinho de estimação? A ciência está mostrando que ele não concorda com isso
Edson Franco

O tempo em São Paulo não tem ajudado. Apesar das chuvas, o cocker Chico passeia diariamente. Nos dias ensolarados, seus donos, o casal Nívia e Vitorio Buzatto, vêm com a coleira, e Chico saltita e abana o rabo diante da perspectiva de ir para a rua. Mas, quando eles se aproximam com a capa de chuva, Chico fica cabisbaixo, inquieto e até recurvado. No diagnóstico dos donos, o cãozinho está contrariado por ter de enfrentar o aguaceiro. Mas, na cabeça de Chico, o problema é a capa. Muito mais do que desconforto, aquele pedaço de plástico amarelo traz à memória do bicho uma experiência humilhante.

Os cães vivem em comunidades - famílias ou matilhas - nas quais compõem sistemas hierarquizados. Quando isso se dá na nossa casa, tudo fica mais fácil. Humanos são "donos" e, agradecidos, os bichos obedecem. Sem essa ordem, o cão resgata o comportamento de seus ancestrais, os lobos. Nas alcateias, para atingir o posto de dono do pedaço, um lobo tem de subjugar seus adversários, usando a força para pressionar as costas, o pescoço e a cabeça. Exatamente os pontos tocados pelas capas de chuva.

Conclusões como essa são os primeiros resultados de uma série de pesquisas recentes que escancaram uma verdade: dedicadíssimos quando o assunto são os primatas, os cientistas foram relapsos com o nosso melhor amigo. Até agora. Para reparar isso, a nova leva de pesquisadores começou seus estudos constatando que o maior obstáculo para a compreensão do que se passa na cabeça dos cães é o homem. Mais exatamente, o antropomorfismo, esse hábito que temos de transferir para os cães impressões, sentimentos e atitudes que são nossos.

Isso não significa que essas novas pesquisas estão aí para aniquilar a ideia de que os cães podem ser - ou estar - ciumentos, amorosos, tristes, radiantes, questionadores ou deprimidos. Para os cientistas, o desafio é tirar o discurso da boca dos humanos e permitir que os cães falem por si.

O exemplo mais popular dessa abordagem chegou às livrarias do Hemisfério Norte em setembro passado e, já na estreia, alcançou o 16º lugar na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times. Trata-se de Inside of a Dog: What Dogs See, Smell and Know (Dentro de um Cão: o que Cães Veem, Cheiram e Sabem, ainda inédito no Brasil), livro de Alexandra Horowitz, cientista cognitiva e professora de psicologia na Universidade Columbia, nos EUA. "Nós sempre falamos sobre como os cães são, o que eles sabem, o que experimentam. Tudo sem observar cientificamente ou interagir com eles. Alimenta esse tipo de postura o fato de considerarmos os cães como 'pequenos humanos'. Menos espertos e sofisticados, mas variações da gente", afirma a autora.
O cão tem um relógio interno dotado de um mecanismo com o qual investiga o ar do ambiente ao longo do dia. com isso, ele identifica, por exemplo, a corrente de ar mais fresca quando o sol se põe. e é assim que ele sabe a hora de acordar, comer ou fazer uma siesta

EM PELE DE RAPOSA
Em iniciativas separadas, Alexandra e os psicólogos cognitivos Brian Hare e Marc Hauser retomam o estudo dos cães do ponto em que a visão humana das coisas começou a atrapalhar: a domesticação, iniciada cerca de 15 mil anos atrás. Para chegar lá, tiveram de viajar no tempo e no espaço. Especificamente para 1959 e para a cidade de Novosibirsk, a maior da Sibéria, distante 2.821 km de Moscou.

Ali, o geneticista Dimitri Belyaev fez um estudo com raposas - parentes distantes do cão e do lobo. A estratégia era chegar perto da jaula e oferecer comida ou afagos. A maioria fugia, mas algumas raposas se entregavam às iguarias e cafunés. Selecionadas, elas se reproduziram e novas peneiras foram feitas para escolher os filhotes mais amistosos. Lá pela oitava geração, já tinha raposa abanando o rabo ao ver um humano conhecido. Cerca de 20 anos depois de iniciado o experimento, as orelhas dos animais se curvaram, as caudas encurtaram e os crânios ficaram mais largos. Nascia a raposa domesticada.

Decifrado o processo de sedução mútua que resultou na domesticação, veio a tarefa complicada de tirar o homem do caminho. "Por meio do antropomorfismo, os nossos ancestrais humanos tentavam explicar e prever o comportamento de outros animais, principalmente aqueles que poderiam virar comida ou que, pior, apreciavam carne humana", diz Alexandra. O que era solução para os homens das cavernas virou um problema que os atuais pesquisadores resolveram com outra volta ao passado. Em 1974, o filósofo sérvio Thomas Nagel publicou o artigo "What Is It like to Be a Bat?" (Como é Ser um Morcego?), no qual critica as simplificações no estudo da mente e fala na necessidade de vermos as coisas a partir do ponto de vista das cobaias. Era o clique que a ciência precisava para estudar os cães. Para saber o que se passa dentro da cabeça deles é preciso ver, ouvir e, principalmente, cheirar como eles.
NOVAS PISTAS | O que a ciência está descobrindo sobre alguns comportamentos caninos

VISÃO >>> Só de acompanhar nossos gesto e olhares, os cães sabem onde guardamos coisas que eles adoram, como nossos sapatos e meias. Não precisam do olfato para isso

SEM NOÇÃO >>> Quando leva uma bronca, o cão fica com o rabo entre as pernas devido ao tom de voz do dono. Ele não associa isso ao fato de ter detonado a mobília, por exemplo

CAPA DE CHUVA >>> Muitos bichos não ficam confortáveis debaixo dela, pois isso lembra um passado em que os cães demonstravam superioridade ao montar uns nos outros

LAMBIDA >>> O que pode parecer um beijo carinhoso é uma investigação para constatar o que você comeu e torcer para que um pouco do alimento saia da sua boca (Revista GALILEU)

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